O Ensino de Desenho na FAUP, ainda.

Patrícia Fernandes entrevista Vítor Silva

O Ensino de Desenho na FAUP, ainda. 




Considera que os professores da Unidade Curricular de Desenho 1 devam ter formação em Belas Artes?


Sim. Sem dúvida. A distinção “disciplinar” é o forte argumento da relação entre os saberes. A “distanciação” é pedagógica e crítica porque se move no território comum da criatividade e da expressão artística. Não o mesmo nem a mesma coisa, mas a alteridade. O desenho é uma matriz comum, mas também um espaço de diferenciação. Na pedagogia, o distanciamento dos docentes às questões mais específicas do ensino da arquitectura não significa uma liminar separação, mas sim uma forte proximidade às questões de ordem instrumental, metodológica e projectual. O desenho no ensino de arquitectura coloca-nos problemas e permite-nos separá-los dos “nossos” problemas (pintura, escultura, design, etc.). Para além disso, o projecto não é uma prerrogativa da arquitectura. 



Tendo como objectivo o uso do desenho como uma ferramenta no pensamento projectual, que tipo desenho se deve ensinar a estes alunos, futuros arquitectos?


Não há tipos de desenho. Há uma relação do real que se auto-constitui no desenho, desenho a desenho. Os desenhos formam o desenhador e a sua potência em desenhar ou não desenhar. Os desenhos são pensamento, a sua existência plural é pensamento, não é uma ferramenta imediatamente disponível para pensar, algo pré-fabricado com o qual se possa operar seguindo o manual de instruções. A “ferramenta”, a existir, inventa-se e deseja-se a cada passo, diante de cada problema, sempre que o desenho relacionar o real, a realidade que implica as múltiplas e heterogéneas questões da concepção arquitectural. 

O desenho e o “pensamento projectual” são a mesma coisa, ou não são.



Na sua opinião, no 1º ano, é importante haver uma relação de continuidade entre Projecto 1 e Desenho 1, em termos programáticos?


A pedagogia é um trabalho colectivo que supõe a relação de muitos e de muitas e distintas matérias, práticas e saberes. No seio da Universidade, as clássicas distinções disciplinares operam diferenças aparentemente artificiais. Todavia as distinções são epistemológicamente fundamentais para também saber relacionar. A descontinuidade é importante para se saber relacionar. Programaticamente: quem relaciona o quê? E que continuidade?! 

É importante que os âmbitos pedagógicos de Desenho e Projecto saibam dar continuidade e também divergir. A questão das convergências ou das continuidades não pode ignorar a potência do “divergente” e da descontinuidade. 



Os conhecimentos que os alunos do primeiro ano trazem do secundário a nível do desenho são suficientes para iniciar a sua aprendizagem na faculdade?


Os conhecimentos são sempre em processo, podem ser equívocos e diversos quanto à sua “quantidade” ou proveniência. Podem ser dados adquiridos, hábitos, práticas mais ou menos satisfatórias, etc. Desenhar não é um saber de conhecimentos adquiridos, mas um “saber” ou não-saber sensorial e emotivo, onde o desejo é atraído por sinais, formas, figuras, representações de variada qualidade. Os estudantes trazem ou não “esse” desejo e a abertura, a disponibilidade, do seu não-saber. 



Que tipo de desenhos sente que os alunos têm mais facilidade/interesse em fazer?


Presume-se na linguagem comum do desenho a existência de “tipos” como categorias naturais previamente conhecidas, etc. Sim, há modos de desenho: esquissos, esboços, desenhos detalhados, ilustrações, etc. São “resultados” expressivos que correspondem a dinâmicas e a necessidades muito distintas (que surgem associadas no âmbito projectual). Por dinâmica entende-se o ritmo, a urgência ou a atenção que cada experiência gráfica relaciona e põe em movimento. 

Os estudantes respondem a estímulos e a enunciados diversificados. O desejo e a disponibilidade genuína dos estudantes convidam a experimentar. Para os que experimentam o caminho fica em aberto. Sabemos, que os desenhos feitos em Projecto são de um “tipo” de efeito, os desenhos de Desenho são de outro “feitio”. Parece dominar o esquisso. Todavia, há estudantes que preferem outros modos de desenhar. 



Pensa que saber desenhar deve anteceder saber pensar arquitectura?


Não, apesar dos “antecedentes”, e de tudo aquilo que poderá estar antes. Há quem pense a arquitectura e não desenhe. Há quem pense a arquitectura e não é arquitecto. Há desenhadores para quem a arquitectura pouco diz, há arquitectos para quem o desenho é fundamental. O mundo é variado e diversificado nas relações que constrói. O desenhar e o pensar a arquitectura podem andar desfasados e podem, como se sabe, muito bem encontrarem-se.


De que forma é que o ensino do desenho numa escola de Arquitectura difere do ensino numa escola de Belas Artes?


De muitas formas. A imaginação visual do espaço é a questão fundamental da pedagogia do desenho numa escola de Arquitectura. A representação e a escala são conceitos fundamentais, a relação entre sistemas de representação e, em especial, o “corte” são procedimentos chave de interpretação. Numa escola de Belas-Artes, estas questões também poderão existir, mas a abertura dos problemas tem outras incidências e a divergência metodológica e crítica também.



O uso do desenho para pensar arquitectura deve ir para lá do seu carácter representativo. Como é que pensa que este pode ser usado também como ferramenta exploratória?


Representar convida a interpretar códigos e sistemas específicos. Representar organiza as formas, a inteligibilidade das formas. (Veja-se o trabalho rigoroso de plantas, cortes, alçados, etc.) Representar torna presente o que não está em presença. A “figurabilidade” não precisa de coordenadas, é processo de formação. Há, haverá sempre, um conflito entre o informe e a forma. Neste conflito a figura, ou o que se configura, e que parece disforme, é o que surge sem espaço como um avesso do espaço, como a figuração de um espaço possível. 

“Exploratória” é o desejo de cada um, de cada desenhador. “Ferramenta” é uma “máquina desejante”. Representação e figurabilidade é a dupla articulação feita de acasos e de necessidade: (não especificamente por esta ordem) procurar ver, entrever, e dar a ver.



Quando os alunos lhe apresentam os seus desenhos, o Professor desenha sobre eles? Com que intuito?


Muito ponderado nesse particular. Raramente o faço. Prefiro desenhar “ao lado”, fazer um desenho. Explico com o (meu) acto de desenhar. 



Costuma pedir aos alunos para afixar os desenhos na parede para os comentar ou para que os alunos conheçam os trabalhos uns dos outros? Que benefícios é que isso pode trazer?


Sim. A construção inteligível do que se faz em desenho deve ser sempre partilhada por todos. O modelo comparativista é importante para compreender a diversidade e a variedade das respostas. Trata-se de reconhecer os aspectos formais e expressivos que os distinguem e os qualificam. Os desenhos existem como testemunhos, imagens, exemplos, casos de estudo, que perfazem um capítulo do trabalho, da memória e da cultura visual de cada um: são repostas a enunciados colectivos que transportam singularidades expressivas próprias, etc. Mostram-se também desenhos de estudantes realizados em outros anos lectivos. Os desenhos não são entidades fechadas em si mesmas, são figuras, representações, sinais que pensam. Nos desenhos não há só informações, formas ou ordens, mais ou menos bem compostas, há também crises, lapsos, ambiguidades, contradições e emoções. Na pedagogia, o trabalho de cada um faz-se no colectivo da aula, na atmosfera comum que todos criam e partilham. Beneficia a todos, muito em especial, quando há interesse, debate, crítica de todos.



Vítor Silva 

17 de abril, ano da pandemia




Este texto não foi escrito de acordo com o acordo ortográfico


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